AutorMarly de Oliveira

Marly de Oliveira

Pior que o cão é sua fúria,
pior que o gato é sua garra,
pior que a sanha de ferir
a que se esconde
sob feição de amor.
Pior que a vida é a não-vida
do que se faz espectador;
nem mergulha, nem nada, nem conhece
o mar fundo:
está sempre à beira da estrada.

Marly de Oliveira

Perdi a capacidade de assombro
mas continuo perplexa:
esta cidade é minha, este espaço
que nunca se retrai,
mas onde o ardor da antiga
chama, que me movia no mínimo
gesto?
Esperei tanto, no entanto, esvaem-se
na relva, ao sol, no vento,
os sonhos desorbitados,
parte da minha natureza
sempre em luta com o fado.
Perdi também no contato
com o mundo, pérola radiosa, vão pecúlio,
uma certa inocência;
ficou a nostalgia de uma antiga
união com o que existe,
triste alfaia.

Marly de Oliveira

Não conheci o desterro,
mas sei a quanto obriga.
Vivo na minha terra,
embora desencontrada. Quem sabe
de mim, quem me ouve
o que não digo, quem segura
a rédea de meu sonho, permitindo
o risco da vertigem, o perigo
de conhecer o abismo?

Marly de Oliveira

Minha felicidade vem de quando estou só
e ninguém me interrompe no poema,
essa espécie de transfusão
do sangue para a palavra,
sem qualquer estratagema.
A palavra é meu rito, minha forma
de celebrar, investir, reivindicar:
a palavra é a minha verdade,
minha pena exposta sem humilhação
à leitura do outro,
hypocrite lecteur, mon semblable.

Marly de Oliveira

De algum forma todos nos queimamos algum dia;
de alguma forma mesmo sem fogo sob o frio sob a chuva
que não passa o calor é terrível
no Rio de Janeiro, quem diria,
quando morei aqui na tua idade
não era assim, agora todos sofrem,
todos dizem que calor infernal
que calor dizem todos e é tudo
muito estranho tudo…
Sou um canteiro onde floresces
e nem sabes, sou o caule
indeciso do teu intenso modo de querer,
a linha reta que jamais se alcança,
a hipotenusa de um triângulo qualquer,
o bule sobre a mesa, a música de Bach,
o pássaro pousada no videira
do fundo de um quintal ou de um jardim
onde ninguém sabe, ninguém jamais ficou sabendo,
que este canteiro existe,
que este canteiro não obstante existe.

Marly de Oliveira

Em Amsterdam na Diezestraat 6
alguém me espera alguém me quer
alguém dá vida e brilho à minha vida
tão dividida que mal se define entre
aquilo e o que.
Alguém me espera entre tulipas
alguém me espera entre folhas tombadas
sob o sol sob a chuva sob o frio
alguém me espera espera espera.
Alguém constrói a sua casa
como artesã-abelha delicada;
sobre o sofá um quadro, uma explosão,
que cada dia mais entendo, cada ano mais,
e outros móveis, cortina,
cozinha, um banheiro
todo branco.
E para mim um quarto, uma cama,
um edredom azul, uma escova,
papéis e muitos outros objetos,
telas tintas um pedaço de ferro,
outro de ouro, outro de aço.
Alguém de longe me acena
com uma lareira acesa.

Marly de Oliveira

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