AutorMaria Lúcia Alvim

Maria Lúcia Alvim

⁠Mágico Desafio
Um filho não deveria
ser feito
para cumprir mandamentos, para
povoar
a solidária solidão de pares amorosos, improvisados e mesmo contrafeitos —
o filho, quando concebido
seria para
provar apenas isto:
a matéria ou
mistério
ou vida
desafiando o pensamento.

Maria Lúcia Alvim

⁠Aquele que um dia fará o meu caixão
Aquele que um dia fará o meu caixão
de antemão tem as medidas:
menina-carapina
surrupiando
Viu crescer, prometer, viu sazonar.
Quando o roxo dos ipês configurou-se
no horizonte
aquele que fará o meu caixão
numa cestinha depôs amor
e morte
Lasca por lasca
fava por fava
fui pedindo, fui rasgando, fui doando
lóbulo mindinho
esses rajados de pele, esses crestados
o estalido da cabiúna
O galo alvorescente
dourou

Maria Lúcia Alvim

⁠XIV
Quisera tanto que durasse
qualquer desejo em qualquer dia
que mesmo sendo em demasia
eu deles nunca me fartasse;
assim enquanto não houvesse
nada mais que vos sugerisse
então que a vida ressurgisse
e só desejos refizesse;
porque deixei vossa verdade
ó coisas já feitas de espera
quando sempre tudo soubera
tão cheio de realidade;
pois bem sei que ando consumida
mas por desejos que são vida.

Maria Lúcia Alvim

⁠Aquavia
Como a fonte que jorra, ambivalente,
marejados de sono, navegamos –
que esse rio de amor e de abandono
seja leito comum para quem morre.
Impelidos à margem da corrente
sacudimos a tarja temporária –
e a alma se evapora: tarlatana
sobre a nossa nudez contraditória.
Na umidade do riso, no desejo
impreciso e profuso, pelo pranto
que no calor das órbitas poreja,
Ah, transidos de frio, patinamos
entre quiosques, domos e coretos
sem nada surpreender ou consumar.

Maria Lúcia Alvim

⁠Cantiga de roda
Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim
Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim
Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim
No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim

Maria Lúcia Alvim

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