Oh, meu corpo, faça de mim um homem que sempre questiona!
” Os brancos racistas criaram a palavra NEGRO, os negros criaram a negritude”
Entre opressores e oprimidos tudo se resolve pela força
Cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la, em relativa opacidade.
No mundo pelo qual viajo, estou me criando incessantemente.
Os oprimidos sempre acreditarão no pior sobre si mesmos.
O que importa não é conhecer o mundo, mas mudá-lo.
Hoje acredito na possibilidade do amor; é por isso que me esforço para rastrear suas imperfeições, suas perversões.
O imperialismo deixa para trás germes de podridão que devemos detectar e remover clinicamente da nossa terra, mas também das nossas mentes.
O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo.
O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior.
No plano interno, os países colonialistas enfrentam contradições e reivindicações operárias que exigem o emprego de suas forças policiais. Além disso, na atual conjuntura internacional, esses países necessitam de suas tropas para proteger o regime. Enfim, conhecemos o mito dos movimentos de libertação dirigidos a partir de Moscou. Na argumentação apavorada do regime, isso significa: “Se as coisas continuarem assim, os comunistas vão acabar se aproveitando desses tumultos para se infiltrar nessas regiões”.
O neutralismo produz no cidadão do Terceiro Mundo um estado de espírito que se traduz, na vida cotidiana, por uma intrepidez e um orgulho hierático que estranhamente se assemelham a uma atitude de desafio. Essa recusa declarada do compromisso, essa vontade ferrenha de não se prender, lembra o comportamento de adolescentes altivos e despojados, sempre prontos a se sacrificar por uma palavra. Tudo isso desconcerta os observadores ocidentais, pois existe, na verdade, um escândalo entre o que esses homens pretendem ser e o que têm por trás de si. Esse país sem ferrovias, sem tropas, sem dinheiro, não justifica a bravata que eles fazem ostensivamente. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma impostura. O Terceiro Mundo dá muitas vezes a impressão de se regozijar no drama e precisar de uma dose semanal de crises.
O neutralismo produz no cidadão do Terceiro Mundo um estado de espírito que se traduz, na vida cotidiana, por uma intrepidez e um orgulho hierático que estranhamente se assemelham a uma atitude de desafio. Essa recusa declarada do compromisso, essa vontade ferrenha de não se prender, lembra o comportamento de adolescentes altivos e despojados, sempre prontos a se sacrificar por uma palavra. Tudo isso desconcerta os observadores ocidentais, pois existe, na verdade, um escândalo entre o que esses homens pretendem ser e o que têm por trás de si. Esse país sem ferrovias, sem tropas, sem dinheiro, não justifica a bravata que eles fazem ostensivamente. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma impostura. O Terceiro Mundo dá muitas vezes a impressão de se regozijar no drama e precisar de uma dose semanal de crises. Esses líderes de países vazios, que falam alto, são irritantes. Temos vontade de fazê-los se calar. Entretanto, eles são cortejados. Ganham flores. Recebem convites. Em uma palavra, são disputados. Isso é o neutralismo. Existe uma literatura colossal a respeito deles, apesar do índice de 98% de iletrados. Viajam muito. Os dirigentes dos países subdesenvolvidos, os estudantes dos países subdesenvolvidos são clientes de ouro para as companhias aéreas. Os responsáveis africanos e asiáticos têm a possibilidade de, no mesmo mês, fazer um curso sobre planejamento socialista em Moscou e outro sobre os benefícios da economia liberal em Londres ou na Universidade Columbia.
Compreende-se que, nessa atmosfera, o cotidiano se torna simplesmente impossível. Não se pode ser felá, proxeneta ou alcoólatra como antes. A violência do regime colonial e a contraviolência do colonizado se equilibram e se respondem numa homogeneidade recíproca extraordinária. Esse reino da violência será ainda mais terrível quanto maior for o número de metropolitanos. O aumento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial contestado. Os governos metropolitanos estão na primeira fase desse período insurrecional, escravos dos colonos. Estes ameaçam tanto os colonizados quanto os seus governos. Empregarão os mesmos métodos contra ambos
E, de fato, lá se vão quase sete anos de crimes na Argélia e nem um único francês foi levado a um tribunal da Justiça francesa pelo assassinato de um argelino.
O nativo sempre soube que não podia esperar nada do outro lado. O trabalho do colono é tornar impossíveis quaisquer sonhos de liberdade do colonizado. O trabalho do colonizado é
imaginar todas as combinações eventuais para aniquilar o colono. No plano do raciocínio, o maniqueísmo do colono produz o maniqueísmo do colonizado. À teoria do “nativo como mal absoluto” corresponde a teoria do “colono como mal absoluto”.
A mobilização das massas, quando ocorre por ocasião da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção da causa comum, de destino nacional, de história coletiva. Assim, a segunda fase, a da construção da nação, vê-se facilitada pela existência desse morteiro moldado no sangue e na cólera. Então compreende-se melhor a originalidade do vocabulário usado nos países subdesenvolvidos. Durante o período colonial, convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, ele é convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, como afirmam, continua. O povo percebe que a vida é um combate interminável.
A violência do colonizado, como dissemos, unifica o povo. Na verdade, em virtude de sua estrutura, o colonialismo é separatista e regionalista. O colonialismo não se contenta em constatar a existência de tribos, ele as reforça e diferencia. O sistema colonial alimenta as chefaturas e reativa as velhas confrarias de marabus. A violência, em sua prática, é totalizante, nacional. Por esse motivo, traz no seu íntimo o aniquilamento do regionalismo e do tribalismo. Da mesma forma, os partidos nacionalistas mostram-se particularmente impiedosos com os caides e os chefes tradicionais. A eliminação de ambos é um pré-requisito para a unificação do povo.
Diante desse mundo, as nações europeias se refestelam na opulência mais ostentatória. Essa opulência europeia é literalmente escandalosa, pois foi construída sobre as costas dos escravos, nutriu-se do sangue dos escravos, provém em linha direta do solo e do subsolo desse mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram edificados com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos. Isso nós decidimos nunca mais esquecer.
A riqueza dos países imperialistas também é nossa riqueza.
Do mesmo modo, afirmamos que os Estados imperialistas cometeriam um grave erro e uma injustiça inqualificável caso se limitassem a retirar de nosso solo as tropas militares, os serviços administrativos e de intendência cuja função era descobrir riquezas, extraí-las e enviá-las para as metrópoles. A reparação moral da independência nacional não nos deixa cegos, não nos alimenta. A riqueza dos países imperialistas também é nossa riqueza. No plano do universal, essa afirmação, como se pode presumir, não significa absolutamente que nós nos sentimos tocados pelas criações das técnicas ou das artes ocidentais. Muito concretamente, a Europa inflou-se de maneira desmedida com o ouro e as matérias-primas dos países coloniais: na América Latina, na China, na África. De todos esses continentes, ante os quais a Europa ergue hoje sua opulenta torre, partem há séculos, em direção dessa mesma Europa, os diamantes e o petróleo, a seda e o algodão, as madeiras e os produtos exóticos. A Europa é, literalmente, a criação do Terceiro Mundo. As riquezas que a sufocam são as que foram roubadas dos povos subdesenvolvidos. Os portos da Holanda, as docas de Bordeaux e de Liverpool especializados no tráfico negreiro devem seu renome aos milhões de escravos deportados. E quando ouvimos um chefe de Estado europeu declarar, com a mão no coração, que tem o dever de ajudar os infelizes povos subdesenvolvidos, não estremecemos de gratidão. Ao contrário, dizemos a nós mesmos: “É uma reparação justa”. Logo, não aceitaremos que a ajuda aos países subdesenvolvidos seja um programa de “irmãs de caridade”. Essa ajuda deve ser a consagração de uma dupla conscientização, conscientização por parte dos colonizados de que isso lhes é devido e, por parte das potências capitalistas, de que efetivamente elas têm que pagar.
Para investir nos países independentes, as empresas privadas exigem condições que se revelam, com a experiência, inaceitáveis ou irrealizáveis. Fiéis ao princípio de rentabilidade imediata de quando vão a “além-mar”, os capitalistas mostram-se reticentes em relação a qualquer investimento de longo prazo. São insubmissos e com frequência abertamente hostis aos pretensos programas de planejamento das jovens equipes que se encontram no poder. A rigor, aceitariam de bom grado emprestar dinheiro aos jovens Estados, sob a condição, no entanto, de que esse dinheiro servisse para comprar produtos manufaturados, máquinas, isto é, para fazer as fábricas da metrópole funcionarem.
Na verdade, a desconfiança dos grupos financeiros ocidentais explica-se pela sua preocupação de não correr risco algum. Por isso, eles exigem uma estabilidade política e um clima social sereno impossíveis de alcançar, quando se leva em conta a situação lamentável da população global no alvorecer da independência. Então, em busca dessa garantia que a ex-colônia não pode assegurar, impõem a permanência de algumas tropas militares ou a entrada do jovem Estado em pactos econômicos ou militares. As empresas privadas fazem pressão sobre seu próprio governo, para que ao menos bases militares sejam instaladas nesses países, tendo como missão proteger seus interesses. Em última instância, essas empresas pedem a seus governos para garantir os investimentos que decidam fazer nesta ou naquela região subdesenvolvida.
Ocorre que poucos países preenchem os requisitos exigidos pelos trustes e monopólios. Dessa forma, os capitais, desprovidos de alternativas seguras, ficam bloqueados na Europa e se imobilizam. E imobilizam-se tanto mais porque os capitalistas se recusam a investir em seu próprio território. A rentabilidade nesse caso é efetivamente irrisória, e o controle fiscal desanima os mais audaciosos.
A situação a longo prazo é catastrófica. Os capitais não circulam mais ou veem sua circulação consideravelmente diminuída. Os bancos suíços os recusam, a Europa sufoca. Apesar dos enormes recursos absorvidos nas despesas militares, o capitalismo internacional encontra-se em apuros.
Mas um outro perigo o ameaça. Com efeito, à medida que o Terceiro Mundo for abandonado e condenado ao retrocesso, e em todo caso à estagnação, pelo egoísmo e pela imoralidade das nações ocidentais, os povos subdesenvolvidos preferirão evoluir em autarquia coletiva.
Agitando o Terceiro Mundo como uma maré que ameaçasse submergir toda a Europa não se logrará dividir as forças progressistas que pretendem conduzir a humanidade rumo à felicidade. O Terceiro Mundo não pretende organizar uma imensa cruzada da fome contra toda a Europa. O que espera daqueles que o mantiveram durante séculos na escravidão é que o ajudem a reabilitar o homem, a fazer triunfar o homem por toda parte, de uma vez por todas.
É claro, porém, que não somos ingênuos a ponto de acreditar que isto se fará com a cooperação e a boa vontade dos governos europeus. Esse trabalho colossal que consiste em reintroduzir o homem no mundo, o homem total, há de ser feito com o auxílio decisivo das massas europeias que, como elas mesmas precisam reconhecer, muitas vezes se alinharam às posições de nossos senhores comuns em relação aos problemas coloniais. Para isso, é preciso primeiro que as massas europeias decidam despertar, sacudir o cérebro e parar de tomar parte no jogo irresponsável da Bela Adormecida.
No momento em que os partidos nacionalistas tentam organizar a classe operária embrionária das cidades, observam-se no campo explosões absolutamente inexplicáveis. É o caso, por exemplo, da famosa insurreição de 1947 em Madagascar. Os serviços colonialistas são formais: é uma revolta camponesa. Na verdade, hoje sabemos que as coisas, como sempre, foram muito mais complicadas. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, as grandes companhias coloniais estenderam o seu poder e se apoderaram da totalidade das terras ainda livres. Na mesma época, falou-se na implantação eventual, na ilha, de refugiados judeus, cabilas, antilhanos. Correu igualmente o boato sobre a iminente invasão da ilha por parte dos brancos da África do Sul, com a cumplicidade dos colonos. Assim, após a guerra, os candidatos da lista nacionalista triunfaram nas eleições. Imediatamente depois, organizou-se a repressão contra as células do partido mdrm (Movimento Democrático da Renovação Malgaxe). Para atingir seus fins, o colonialismo serviu-se dos meios mais clássicos: prisões em massa, propaganda racista intertribal e criação de um partido com os elementos desorganizados do lumpemproletariado. Esse partido, dito dos Deserdados de Madagascar (Padesm), daria à autoridade colonial, por suas provocações decisivas, a garantia para a manutenção da ordem. Porém, essa operação banal para aniquilar um partido, preparada de antemão, toma aqui proporções gigantescas. As massas rurais, na defensiva há três ou quatro anos, sentem-se repentinamente em perigo de morte e decidem se opor ferozmente às forças colonialistas. Armado de azagaias e amiúde de pedras e bastões, o povo se lança na insurreição generalizada, em prol da libertação nacional. Sabemos o que vem em seguida.
Essas insurreições armadas representam apenas um dos meios utilizados pelas massas rurais para interferir na luta nacional. Algumas vezes os camponeses assumem o lugar da agitação urbana, quando o partido nacional nas cidades se torna alvo da repressão policial. As notícias chegam ao campo ampliadas, desmedidamente ampliadas: líderes detidos, ataques em série com metralhadoras; o sangue negro inunda as cidades, os pequenos colonos banham-se no sangue árabe. Então o ódio acumulado, o ódio exacerbado, acaba por explodir.
Os serviços secretos colonialistas, que não depuseram as armas depois da independência, fomentam o descontentamento e chegam inclusive a criar graves dificuldades aos jovens governos.
O colonialismo tenta às vezes diversificar, desarticular o ímpeto nacionalista. Em vez de incitar os xeiques e os chefes contra os “revolucionários” das cidades, os serviços ligados a assuntos nativos organizam as tribos e as confrarias em partidos. Diante do partido urbano que começava a “encarnar a vontade nacional” e a se tornar um perigo para um regime colonial, surgem pequenos grupos, tendências, partidos de base étnica ou regionalista. É a tribo inteira que se converte em partido político, aconselhado de perto pelos colonialistas. A mesa-redonda pode começar. O partido unitário se afogará na aritmética das tendências. Os partidos tribais se opõem à centralização, à unidade, e denunciam a ditadura do partido unitário.
Mais tarde, essa tática será utilizada pela oposição nacional. Dentre os dois ou três partidos nacionalistas que lideraram a luta de libertação, o ocupante fez sua escolha. As mutualidades dessa escolha são clássicas: quando um partido reuniu a unanimidade nacional e se impôs ao ocupante como único interlocutor, o ocupante multiplica as manobras e protela ao máximo as negociações. Esse atraso será usado para reduzir as exigências desse partido a migalhas, ou então para obter da direção o afastamento de certos elementos “extremistas”.
Se, ao contrário, nenhum partido se impõe de fato, o ocupante contenta-se em privilegiar aquele que lhe parece o mais “razoável”. Os partidos nacionalistas que não participaram das negociações passam, então, a denunciar o acordo firmado entre o outro partido e o ocupante.
A tática e a estratégia se confundem. A arte política transforma-se simplesmente em arte militar. O militante político é o combatente. Fazer a guerra e fazer política são uma única e mesma coisa.
O colonialismo vai igualmente encontrar no lumpemproletariado uma massa de manobra considerável. Por isso, todo movimento de libertação deve prestar o máximo de atenção nesse lumpemproletariado. Este sempre responde ao chamado da insurreição, mas se a insurreição acredita poder prosperar ignorando-o, o lumpemproletariado, essa massa de famintos e desclassificados, se lançará na luta armada, participará do conflito, dessa vez ao lado do opressor. Este, que nunca perde uma oportunidade de jogar os negros uns contra os outros, se servirá, com rara felicidade, da inconsciência e da ignorância que são as deficiências do lumpemproletariado. Essa reserva humana disponível, se não for imediatamente organizada pela insurreição, acabará como grupo de mercenários ao lado das tropas colonialistas.
O colonizado deve se persuadir de que o colonialismo não lhe dá nada de graça. O que o colonizado obtém por meio da luta política ou da luta armada não é o resultado da boa vontade ou do bom coração do colono, e sim traduz a impossibilidade de se protelar as concessões. Mais do que isso, o colonizado precisa saber que não é o colonialismo que faz essas concessões, mas ele próprio. Quando o governo britânico decide outorgar à população africana alguns assentos a mais na Assembleia do Quênia, é preciso muito cinismo ou ignorância para presumir que o governo britânico fez concessões. Ninguém vê que é o povo queniano quem faz concessões? É preciso que os povos colonizados, que os povos que foram espoliados abandonem a mentalidade que os caracterizou até agora. O colonizado pode no máximo aceitar um compromisso com o colonialismo, mas nunca um comprometimento.
A história nos ensina que o combate anticolonialista não se inscreve de imediato numa perspectiva nacionalista. Por muito tempo o colonizado dirige seus esforços para a supressão de determinadas iniquidades: trabalho forçado, sanções corporais, desigualdade salarial, restrições dos direitos políticos etc. Esse combate em prol da democracia contra a opressão do homem vai progressivamente afastar-se da confusão neoliberal universalista para desembocar, por vezes com muito esforço, na reivindicação nacional. Ora, o despreparo das elites, a ausência de ligação orgânica entre elas e as massas, sua indolência e, digamos também, a covardia no momento decisivo da luta estarão na origem de desventuras trágicas.
A consciência nacional, em vez de ser a cristalização coordenada das aspirações mais íntimas do conjunto do povo, em vez de ser o produto imediato mais palpável da mobilização popular, será sempre apenas uma forma sem conteúdo, frágil, grosseira. As falhas que aí são descobertas explicam amplamente a facilidade com que, nos jovens países independentes, passa-se da nação à etnia, do Estado à tribo. São essas fissuras que demonstram os recuos tão penosos e tão prejudiciais ao desenvolvimento nacional, à unidade nacional. Veremos que essas fragilidades e os graves perigos que elas encerram são o resultado histórico da incapacidade da burguesia nacional dos países subdesenvolvidos para racionalizar a práxis popular, ou seja, para extrair sua razão.
Em seu aspecto decadente, a burguesia nacional será consideravelmente ajudada pelas burguesias ocidentais, que se apresentam como turistas amantes do exotismo, das caçadas, dos cassinos. A burguesia nacional organiza centros de repouso e de lazer e terapias de prazer destinados à burguesia ocidental. Essa atividade adotará o nome de turismo e será equiparada, nesse caso, a uma indústria nacional. Se quisermos uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu na América Latina. Os cassinos de Havana, da Cidade do México, as praias do Rio, as garotas brasileiras, as garotas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana são estigmas dessa depravação da burguesia nacional. Por não ter ideias, por estar fechada em si mesma, apartada do povo, minada pela incapacidade congênita de pensar o conjunto dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional vai assumir o papel de gerente das empresas do Ocidente e praticamente organizar seu país como lupanar da Europa.
Mais uma vez, é preciso ter diante dos olhos o espetáculo lamentável de determinadas repúblicas da América Latina. Depois de um voo rápido, os homens de negócios dos Estados Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas desembarcam “nos trópicos” e de oito a dez dias mergulham na doce depravação que suas “reservas” lhes oferecem.
O comportamento dos proprietários de terras nacionais praticamente se identifica com o da burguesia das cidades. Os grandes agricultores exigiram, a partir da proclamação da independência, a nacionalização das propriedades agrícolas. Com o auxílio de uma série de negociatas, conseguiram se apropriar das fazendas antes pertencentes aos colonos, reforçando assim seu domínio sobre a região. Mas eles não tentam renovar a agricultura, intensificá-la ou integrá-la numa economia de fato nacional.
Na verdade, os proprietários de terras nacionais vão exigir do poder público que multiplique, em proveito deles, as facilidades e os privilégios que antes beneficiavam os colonos estrangeiros. A exploração dos trabalhadores agrícolas será reforçada e legitimada. Manipulando dois ou três slogans, esses novos colonos vão exigir dos trabalhadores agrícolas uma labuta enorme, evidentemente em nome do esforço nacional. Não haverá modernização da agricultura, nem plano de desenvolvimento, nem iniciativas, pois as iniciativas, que implicam um mínimo de risco, provocam pânico nesses meios e desnorteiam a burguesia fundiária, hesitante, prudente, que submerge cada vez mais nos circuitos instaurados pelo colonialismo. Nessas regiões, as iniciativas são próprias do governo. O governo é que as decide, estimula, financia. A burguesia agrícola recusa-se a assumir o menor risco. É contra a aposta, a aventura. Não quer trabalhar na incerteza. Exige o sólido, o rápido. Os lucros que embolsa, enormes, considerando a renda nacional, não são reinvestidos. Uma poupança economizada domina a psicologia desses proprietários de terras. Por vezes, sobretudo nos anos que se seguem à independência, a burguesia não hesita em confiar a bancos estrangeiros os lucros que aufere do solo nacional. Por outro lado, grandes quantias são utilizadas para fins de ostentação, em carros, em casas suntuosas, em todas as coisas bem descritas pelos economistas como características da burguesia subdesenvolvida.
Dissemos que a burguesia colonizada que ascende ao poder emprega sua agressividade de classe para se apossar dos cargos anteriormente ocupados pelos estrangeiros. De fato, logo após a independência, ela se choca com as sequelas humanas do colonialismo: advogados, comerciantes, proprietários rurais, médicos, funcionários de alto escalão. Vai lutar impiedosamente contra essa gente “que insulta a dignidade nacional”. Acena energicamente com as noções de nacionalização dos quadros, de africanização dos quadros. Com efeito, seu comportamento vai se caracterizar cada vez mais pelo racismo. Brutalmente, ela apresenta ao governo um problema claro: precisamos desses cargos. E só deixará de manifestar seu ressentimento quando tiver ocupado todos eles.
Por sua vez, o proletariado das cidades, a massa dos desempregados, os pequenos artesãos, aqueles que exercem os chamados pequenos ofícios se situam a favor dessa atitude nacionalista, mas sejamos justos: eles apenas copiam a atitude da burguesia. Se a burguesia nacional entra em competição com os europeus, então os artesãos e os pequenos ofícios começam a lutar contra os africanos não nacionais.
É nessa perspectiva que é preciso interpretar o fato de que, nos jovens países independentes, triunfe aqui e ali o federalismo. Como se sabe, a dominação colonial privilegiou determinadas regiões. A economia das colônias não está integrada ao conjunto da nação, está sempre disposta em relações de complementaridade com as diferentes metrópoles. Quase nunca o colonialismo explora a totalidade do país. Ele se contenta em adequar os recursos naturais que extrai e exporta para as indústrias metropolitanas, permitindo assim uma relativa riqueza territorial, enquanto o resto da colônia mantém, ou aprofunda, seu subdesenvolvimento e sua miséria.
As denominações de substituição – África ao sul ou ao norte do Saara – não conseguem ocultar esse racismo latente.
Como vemos, as carências da burguesia não se manifestam unicamente no plano econômico. Tendo chegado ao poder em nome de um nacionalismo limitado, em nome da raça, a burguesia, a despeito de declarações muito bonitas na forma, mas completamente desprovidas de conteúdo, manejando numa completa irresponsabilidade frases que saem em linha direta dos tratados de moral e de filosofia política da Europa, vai demonstrar sua incapacidade de fazer triunfar um catecismo humanista mínimo. A burguesia, quando é forte, quando dispõe o mundo em função de seu poderio, não hesita em afirmar ideias democráticas de pretensão universalizante. É preciso que essa burguesia economicamente sólida sofra condições excepcionais para ser forçada a não respeitar sua ideologia humanista. A burguesia ocidental, embora seja fundamentalmente racista, consegue, na maioria das vezes, mascarar esse racismo ao multiplicar suas nuances, o que lhe permite conservar intacta sua proclamação da eminente dignidade humana.
A burguesia ocidental instalou barreiras e grades suficientes para não temer de fato a competição daqueles que ela explora e despreza. O racismo burguês ocidental em relação ao negro e ao bicot é um racismo de desprezo; é um racismo que minimiza. Mas a ideologia burguesa, que é a proclamação de uma igualdade de essência entre os homens, empenha-se em permanecer lógica consigo mesma, convidando os sub-homens a se humanizarem por meio do tipo de humanidade ocidental que ela encarna.
O racismo da jovem burguesia nacional é um racismo de defesa, um racismo baseado no medo. Não difere essencialmente do tribalismo vulgar, e até das rivalidades entre çofs e confrarias.
Nesses países pobres, subdesenvolvidos, nos quais, segundo a regra, a maior riqueza está ao lado da maior miséria, o Exército e a polícia são os pilares do regime. Um Exército e uma polícia que, mais uma regra a ser lembrada, são assessorados por especialistas estrangeiros. A força dessa polícia, o poder desse Exército são proporcionais ao marasmo em que está mergulhado o resto da nação. A burguesia nacional se vende cada vez mais abertamente às grandes empresas estrangeiras. Por meio de prebendas, as concessões são obtidas pelo estrangeiro, os escândalos se multiplicam, os ministros enriquecem, suas mulheres transformam-se em cocotes, os deputados vão se ajeitando e, do policial ao agente alfandegário, todos participam dessa grande caravana da corrupção.
A oposição torna-se mais agressiva e o povo capta nas entrelinhas sua propaganda. A partir de então, a hostilidade em relação à burguesia é manifesta. A jovem burguesia que parece acometida de senilidade precoce não leva em conta os conselhos que lhe são dados e se revela incapaz de compreender que seria de seu interesse encobrir, ainda que ligeiramente, sua exploração.
Oh, meu corpo, faça de mim um homem que sempre questiona!
” Os brancos racistas criaram a palavra NEGRO, os negros criaram a negritude”
Entre opressores e oprimidos tudo se resolve pela força
Cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la, em relativa opacidade.
No mundo pelo qual viajo, estou me criando incessantemente.
Os oprimidos sempre acreditarão no pior sobre si mesmos.
O que importa não é conhecer o mundo, mas mudá-lo.
Hoje acredito na possibilidade do amor; é por isso que me esforço para rastrear suas imperfeições, suas perversões.
O imperialismo deixa para trás germes de podridão que devemos detectar e remover clinicamente da nossa terra, mas também das nossas mentes.
O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo.
O colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado puro, e só se curvará diante de uma violência maior.
No plano interno, os países colonialistas enfrentam contradições e reivindicações operárias que exigem o emprego de suas forças policiais. Além disso, na atual conjuntura internacional, esses países necessitam de suas tropas para proteger o regime. Enfim, conhecemos o mito dos movimentos de libertação dirigidos a partir de Moscou. Na argumentação apavorada do regime, isso significa: “Se as coisas continuarem assim, os comunistas vão acabar se aproveitando desses tumultos para se infiltrar nessas regiões”.
O neutralismo produz no cidadão do Terceiro Mundo um estado de espírito que se traduz, na vida cotidiana, por uma intrepidez e um orgulho hierático que estranhamente se assemelham a uma atitude de desafio. Essa recusa declarada do compromisso, essa vontade ferrenha de não se prender, lembra o comportamento de adolescentes altivos e despojados, sempre prontos a se sacrificar por uma palavra. Tudo isso desconcerta os observadores ocidentais, pois existe, na verdade, um escândalo entre o que esses homens pretendem ser e o que têm por trás de si. Esse país sem ferrovias, sem tropas, sem dinheiro, não justifica a bravata que eles fazem ostensivamente. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma impostura. O Terceiro Mundo dá muitas vezes a impressão de se regozijar no drama e precisar de uma dose semanal de crises.
O neutralismo produz no cidadão do Terceiro Mundo um estado de espírito que se traduz, na vida cotidiana, por uma intrepidez e um orgulho hierático que estranhamente se assemelham a uma atitude de desafio. Essa recusa declarada do compromisso, essa vontade ferrenha de não se prender, lembra o comportamento de adolescentes altivos e despojados, sempre prontos a se sacrificar por uma palavra. Tudo isso desconcerta os observadores ocidentais, pois existe, na verdade, um escândalo entre o que esses homens pretendem ser e o que têm por trás de si. Esse país sem ferrovias, sem tropas, sem dinheiro, não justifica a bravata que eles fazem ostensivamente. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma impostura. O Terceiro Mundo dá muitas vezes a impressão de se regozijar no drama e precisar de uma dose semanal de crises. Esses líderes de países vazios, que falam alto, são irritantes. Temos vontade de fazê-los se calar. Entretanto, eles são cortejados. Ganham flores. Recebem convites. Em uma palavra, são disputados. Isso é o neutralismo. Existe uma literatura colossal a respeito deles, apesar do índice de 98% de iletrados. Viajam muito. Os dirigentes dos países subdesenvolvidos, os estudantes dos países subdesenvolvidos são clientes de ouro para as companhias aéreas. Os responsáveis africanos e asiáticos têm a possibilidade de, no mesmo mês, fazer um curso sobre planejamento socialista em Moscou e outro sobre os benefícios da economia liberal em Londres ou na Universidade Columbia.
Compreende-se que, nessa atmosfera, o cotidiano se torna simplesmente impossível. Não se pode ser felá, proxeneta ou alcoólatra como antes. A violência do regime colonial e a contraviolência do colonizado se equilibram e se respondem numa homogeneidade recíproca extraordinária. Esse reino da violência será ainda mais terrível quanto maior for o número de metropolitanos. O aumento da violência no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial contestado. Os governos metropolitanos estão na primeira fase desse período insurrecional, escravos dos colonos. Estes ameaçam tanto os colonizados quanto os seus governos. Empregarão os mesmos métodos contra ambos
E, de fato, lá se vão quase sete anos de crimes na Argélia e nem um único francês foi levado a um tribunal da Justiça francesa pelo assassinato de um argelino.
O nativo sempre soube que não podia esperar nada do outro lado. O trabalho do colono é tornar impossíveis quaisquer sonhos de liberdade do colonizado. O trabalho do colonizado é
imaginar todas as combinações eventuais para aniquilar o colono. No plano do raciocínio, o maniqueísmo do colono produz o maniqueísmo do colonizado. À teoria do “nativo como mal absoluto” corresponde a teoria do “colono como mal absoluto”.
A mobilização das massas, quando ocorre por ocasião da guerra de libertação, introduz em cada consciência a noção da causa comum, de destino nacional, de história coletiva. Assim, a segunda fase, a da construção da nação, vê-se facilitada pela existência desse morteiro moldado no sangue e na cólera. Então compreende-se melhor a originalidade do vocabulário usado nos países subdesenvolvidos. Durante o período colonial, convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, ele é convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, como afirmam, continua. O povo percebe que a vida é um combate interminável.
A violência do colonizado, como dissemos, unifica o povo. Na verdade, em virtude de sua estrutura, o colonialismo é separatista e regionalista. O colonialismo não se contenta em constatar a existência de tribos, ele as reforça e diferencia. O sistema colonial alimenta as chefaturas e reativa as velhas confrarias de marabus. A violência, em sua prática, é totalizante, nacional. Por esse motivo, traz no seu íntimo o aniquilamento do regionalismo e do tribalismo. Da mesma forma, os partidos nacionalistas mostram-se particularmente impiedosos com os caides e os chefes tradicionais. A eliminação de ambos é um pré-requisito para a unificação do povo.
Diante desse mundo, as nações europeias se refestelam na opulência mais ostentatória. Essa opulência europeia é literalmente escandalosa, pois foi construída sobre as costas dos escravos, nutriu-se do sangue dos escravos, provém em linha direta do solo e do subsolo desse mundo subdesenvolvido. O bem-estar e o progresso da Europa foram edificados com o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos. Isso nós decidimos nunca mais esquecer.
A riqueza dos países imperialistas também é nossa riqueza.
Do mesmo modo, afirmamos que os Estados imperialistas cometeriam um grave erro e uma injustiça inqualificável caso se limitassem a retirar de nosso solo as tropas militares, os serviços administrativos e de intendência cuja função era descobrir riquezas, extraí-las e enviá-las para as metrópoles. A reparação moral da independência nacional não nos deixa cegos, não nos alimenta. A riqueza dos países imperialistas também é nossa riqueza. No plano do universal, essa afirmação, como se pode presumir, não significa absolutamente que nós nos sentimos tocados pelas criações das técnicas ou das artes ocidentais. Muito concretamente, a Europa inflou-se de maneira desmedida com o ouro e as matérias-primas dos países coloniais: na América Latina, na China, na África. De todos esses continentes, ante os quais a Europa ergue hoje sua opulenta torre, partem há séculos, em direção dessa mesma Europa, os diamantes e o petróleo, a seda e o algodão, as madeiras e os produtos exóticos. A Europa é, literalmente, a criação do Terceiro Mundo. As riquezas que a sufocam são as que foram roubadas dos povos subdesenvolvidos. Os portos da Holanda, as docas de Bordeaux e de Liverpool especializados no tráfico negreiro devem seu renome aos milhões de escravos deportados. E quando ouvimos um chefe de Estado europeu declarar, com a mão no coração, que tem o dever de ajudar os infelizes povos subdesenvolvidos, não estremecemos de gratidão. Ao contrário, dizemos a nós mesmos: “É uma reparação justa”. Logo, não aceitaremos que a ajuda aos países subdesenvolvidos seja um programa de “irmãs de caridade”. Essa ajuda deve ser a consagração de uma dupla conscientização, conscientização por parte dos colonizados de que isso lhes é devido e, por parte das potências capitalistas, de que efetivamente elas têm que pagar.
Para investir nos países independentes, as empresas privadas exigem condições que se revelam, com a experiência, inaceitáveis ou irrealizáveis. Fiéis ao princípio de rentabilidade imediata de quando vão a “além-mar”, os capitalistas mostram-se reticentes em relação a qualquer investimento de longo prazo. São insubmissos e com frequência abertamente hostis aos pretensos programas de planejamento das jovens equipes que se encontram no poder. A rigor, aceitariam de bom grado emprestar dinheiro aos jovens Estados, sob a condição, no entanto, de que esse dinheiro servisse para comprar produtos manufaturados, máquinas, isto é, para fazer as fábricas da metrópole funcionarem.
Na verdade, a desconfiança dos grupos financeiros ocidentais explica-se pela sua preocupação de não correr risco algum. Por isso, eles exigem uma estabilidade política e um clima social sereno impossíveis de alcançar, quando se leva em conta a situação lamentável da população global no alvorecer da independência. Então, em busca dessa garantia que a ex-colônia não pode assegurar, impõem a permanência de algumas tropas militares ou a entrada do jovem Estado em pactos econômicos ou militares. As empresas privadas fazem pressão sobre seu próprio governo, para que ao menos bases militares sejam instaladas nesses países, tendo como missão proteger seus interesses. Em última instância, essas empresas pedem a seus governos para garantir os investimentos que decidam fazer nesta ou naquela região subdesenvolvida.
Ocorre que poucos países preenchem os requisitos exigidos pelos trustes e monopólios. Dessa forma, os capitais, desprovidos de alternativas seguras, ficam bloqueados na Europa e se imobilizam. E imobilizam-se tanto mais porque os capitalistas se recusam a investir em seu próprio território. A rentabilidade nesse caso é efetivamente irrisória, e o controle fiscal desanima os mais audaciosos.
A situação a longo prazo é catastrófica. Os capitais não circulam mais ou veem sua circulação consideravelmente diminuída. Os bancos suíços os recusam, a Europa sufoca. Apesar dos enormes recursos absorvidos nas despesas militares, o capitalismo internacional encontra-se em apuros.
Mas um outro perigo o ameaça. Com efeito, à medida que o Terceiro Mundo for abandonado e condenado ao retrocesso, e em todo caso à estagnação, pelo egoísmo e pela imoralidade das nações ocidentais, os povos subdesenvolvidos preferirão evoluir em autarquia coletiva.
Agitando o Terceiro Mundo como uma maré que ameaçasse submergir toda a Europa não se logrará dividir as forças progressistas que pretendem conduzir a humanidade rumo à felicidade. O Terceiro Mundo não pretende organizar uma imensa cruzada da fome contra toda a Europa. O que espera daqueles que o mantiveram durante séculos na escravidão é que o ajudem a reabilitar o homem, a fazer triunfar o homem por toda parte, de uma vez por todas.
É claro, porém, que não somos ingênuos a ponto de acreditar que isto se fará com a cooperação e a boa vontade dos governos europeus. Esse trabalho colossal que consiste em reintroduzir o homem no mundo, o homem total, há de ser feito com o auxílio decisivo das massas europeias que, como elas mesmas precisam reconhecer, muitas vezes se alinharam às posições de nossos senhores comuns em relação aos problemas coloniais. Para isso, é preciso primeiro que as massas europeias decidam despertar, sacudir o cérebro e parar de tomar parte no jogo irresponsável da Bela Adormecida.
No momento em que os partidos nacionalistas tentam organizar a classe operária embrionária das cidades, observam-se no campo explosões absolutamente inexplicáveis. É o caso, por exemplo, da famosa insurreição de 1947 em Madagascar. Os serviços colonialistas são formais: é uma revolta camponesa. Na verdade, hoje sabemos que as coisas, como sempre, foram muito mais complicadas. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, as grandes companhias coloniais estenderam o seu poder e se apoderaram da totalidade das terras ainda livres. Na mesma época, falou-se na implantação eventual, na ilha, de refugiados judeus, cabilas, antilhanos. Correu igualmente o boato sobre a iminente invasão da ilha por parte dos brancos da África do Sul, com a cumplicidade dos colonos. Assim, após a guerra, os candidatos da lista nacionalista triunfaram nas eleições. Imediatamente depois, organizou-se a repressão contra as células do partido mdrm (Movimento Democrático da Renovação Malgaxe). Para atingir seus fins, o colonialismo serviu-se dos meios mais clássicos: prisões em massa, propaganda racista intertribal e criação de um partido com os elementos desorganizados do lumpemproletariado. Esse partido, dito dos Deserdados de Madagascar (Padesm), daria à autoridade colonial, por suas provocações decisivas, a garantia para a manutenção da ordem. Porém, essa operação banal para aniquilar um partido, preparada de antemão, toma aqui proporções gigantescas. As massas rurais, na defensiva há três ou quatro anos, sentem-se repentinamente em perigo de morte e decidem se opor ferozmente às forças colonialistas. Armado de azagaias e amiúde de pedras e bastões, o povo se lança na insurreição generalizada, em prol da libertação nacional. Sabemos o que vem em seguida.
Essas insurreições armadas representam apenas um dos meios utilizados pelas massas rurais para interferir na luta nacional. Algumas vezes os camponeses assumem o lugar da agitação urbana, quando o partido nacional nas cidades se torna alvo da repressão policial. As notícias chegam ao campo ampliadas, desmedidamente ampliadas: líderes detidos, ataques em série com metralhadoras; o sangue negro inunda as cidades, os pequenos colonos banham-se no sangue árabe. Então o ódio acumulado, o ódio exacerbado, acaba por explodir.