Sob a luz feroz do teu rosto
Amar um leão usa-se pouco,
porque não pode afagá-lo
o nosso desejo de afagá-lo,
como tantas vezes cão ou gato
aceitam-nos a mão a deslizar
sobre seu pêlo;
amar um leão não se devia,
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo
encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania; amar
um leão é só distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele;
era mais certo amar um barco,
era mais fácil amar um cavalo;
amar um leão é não poder amá-lo;
e nada que façamos adoça
o que nele nos ameaça se
amar um leão nos acontece:
à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce;
amar um leão, se nos matasse;
se nos matasse o leão que amamos
seria a dor maior, mais que esperada:
presas patas fúria cravadas em nossa carne;
mas o leão, que amamos,
não nos mata.
Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,
embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza
que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos
em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,
sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.
Hoje te parecem desoladas todas as avenidas.
Podes senti-las em tuas roupas que cheiram ainda
aos corredores que se lançavam apressados nos portões
de partida. Tudo foi claro e tudo foi absurdo, como agora
no poema, quando rimas e melancolia brotam ridículas,
pretensamente belas como orquídeas desmedidas.
Amanhã, porém, tudo estará limpo e seco e reto.
Cicatrizadas as feridas, restarão contra o céu
muito branco da memória não mais que
a silhueta precisa — pernas braços cabelos —
daqueles pinheiros, tristíssimos, e uma palavra
sem nexo: Curitiba, Curitiba.
Talvez você não seja mais que isto: alguém,
de costas, tenta acender um cigarro ao vento.
E há este oceano abstrato que vem bater em nosso quarto.
É preciso cuidado, não são poucas e são altas suas ondas;
escuto, mas quem compreenderia a valsa monocórdia
dos afogados, feita de uma boca intraduzível?
O vento dispersa o que eu diria, não chego
a você, a seus ouvidos; assim também minha mão
que desmorona antes de alcançar seu rosto onde
do que entre nós alguma vez foi nítido embaraçam-se
os fios; o vento derrama seus olhos para longe,
dessalga e seca nos meus a hipótese da queixa;
vento da noite, que espalha suas pedras negras
no imenso metro entre nós.
Talvez o mundo mais perfeito seja apenas isto:
você, enfim, acende seu cigarro.
O CORAÇÃO
Quase só músculo a carne dura.
É preciso morder com força.
PEDIDO
Houvesse Deus e os deuses
A fim de que lhes pedisse:
o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije
todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída
da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.
TERCETO
Não há matéria para se fazer a tristeza
nessa manhã, manhã perfeita
se a mão que me deu maio fosse a tua.
VINHETA
Ame-se o que é, como nós,
efêmero. Todo o universo
podia chamar-se: gérbera.
Tudo, como a flor, pulsa
e arde e apodrece. Sei,
repito ensinamento já sabido
e lições não dizem mais
que margaridas e junquilhos.
Lições, há quem diga,
são inúteis, por mais belas.
Melhor, porém, acrescento,
se azuis, vermelhas, amarelas.
O SÓ
Na longa alameda a luz aos pedaços cai
mole do alto dos postes. Ele olha.
Para que não doa, apenas olha.
E não dói.
O DOIDO
Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra
acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável, a cabeça
reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua
em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.
Absorvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação
de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos
encardidos a água das praias,
como se província sua,
como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,
até que desceu a noite
e uma pedra veio buscá-lo.
GRAÇA
Não saberia dizer a hora
em que me desfizera de tudo o que não era teu,
quando cada coisa se deixou cobrir
por tua presença sem margens
e deixou de haver um lado
que fosse fora de ti.