AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Não tenho tempo pra mais nada, ser feliz me consome muito.
A Serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardin.
Estou no começo do meu dessespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela,se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre.
Não quero faca nem queijo. Quero a fome.
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. (Ensinamento)
Ama e nem sabe mais o que ama. (Pranto Para Comover Jonathan)
Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
As sensibilidades sem governo.
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira(…) Vai ser coxo na vida é maldição para homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta.
“Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.”
Dona Doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Não tenho mais tempo algum, ser feliz me consome.
Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande.
(…) fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove.
Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra
Resumo
Gerou os filhos, os netos,
deu à casa o ar de sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.
…me consola, moço.
Fala uma frase, feita com o meu nome,
Para que ardam os crisântemos
E eu tenha um feliz Natal!…
Dor não tem nada a ver com amargura. Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais, é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável. Cada dia mais rica de humanidade.
Aqui é dor, aqui é amor, aqui é amor e dor:
onde um homem projeta seu perfil e pergunta atônito:
em que direção se vai?
“Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta.
As sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.”
Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo.
Quero pôr o bonito numa caixa com chave
para abrir de vez em quando e olhar.
Meu Deus, me dê cinco anos.
Me dá a mão, me cura de ser grande!
Beleza não é luxo. É uma necessidade!
Quero comer bolo de noiva,
puro açúcar, puro amor carnal
disfarçado de corações e sininhos:
um branco, outro cor-de-rosa,
um branco, outro cor-de-rosa.
Estou no começo do meu desespero, e só vejo dois caminhos: ou viro doida, ou santa.
É roxo o amor, de amoras não, de dor.
Me dão mingaus, caldos quentes, me dão prudentes conselhos, eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido, a tua boca de brasa.
Com perdão da palavra, quero cair na vida.
Tudo que a memória amou já ficou eterno.
Vale a pena esperar, contra toda a esperança,
o cumprimento da Promessa que Deus fez a nossos
pais no deserto. Até lá, o sol com chuva, o arco-íris,
o esforço de amor, o maná em pequeninas rodelas,
tornam boa a vida. A vida rui? A vida rola mas não cai.
A vida é boa.
Um corpo quer outro corpo, uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde.
Eu mesma não entendo minha enormíssima paciência de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo.
Preciso mentir um pouco para que o ritmo aconteça e eu própria entenda o discurso.
Quero você na minha frente, extático, (…) e eu para todo o sempre olhando, olhando, olhando…
Eu quero depois, quando viver de novo, a ressurreição e a vida escamoteando o tempo dividido, eu quero o tempo inteiro.
A gente tem sede de infinito e de permanência, então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto.
Eu acho que Deus é uma projeção humana, é um desejo infinito que nós temos de adoração, e de algo que nos suspende com o sentido absoluto.
Se pudesse, hoje, varria, isso mesmo, varria as pessoas todas com vassoura, como se fossem ciscos.
Aqui se passa fome, aqui se odeia, aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.
O amor me fere é debaixo do braço, de um vão entre as costelas, atinge o meu coração é por esta via inclinada
Faça-se a dura vontade do que habita meu peito: Vem, Jonathan, traz flores pra minha mãe e um par de algemas pra mim.
.Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
O amor usa o correio, o correio trapaceia, a carta não chega, o amor fica sem saber se é ou não é.
Quanto a mim, dou graças pelo que agora sei e, mais que perdoo, eu amo.
Tudo manha, truque, engenho: é descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo. Mas água o amor não é.
Eu ponho o amor no pilão com cinza e grão de roxo e soco. Macero ele, faço dele cataplasma e ponho sobre a ferida.
Estremecerei de susto até dormir. E no entanto é tudo tão pequeno. Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
É verdade, experimento o ruim e acho que o mundo desabou.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
“Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo. Quero pôr o bonito numa caixa com chave para abrir de vez em quando e olhar.”
A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.
Amor pra mim é ser capaz de permitir que aquele que eu amo exista como tal, como ele mesmo. Isso é o mais pleno amor. Dar a liberdade dele existir ao meu lado do jeito que ele é.
Quem carrega o mar nos seus limites tem carinho com o mar.
Era raiva não. Era marca de dor.
Fui dormir umas vezes tão feliz, que, se
soubesse minha força, levitava.
Em outras, tanta foi a tristeza que fiz versos
Há sempre uma razão, embora não haja nenhuma explicação.
Para o desejo do meu coração, o mar é uma gota.
Desejo a máquina do tempo
para que não haja o havido
e eu recomece misericordiosamente.
Do livro “Os Componentes da banda”
Então eu virei pra ela e falei assim: ah, nada, boba, também é assim, se der, bem, se não der, amém, toca pra frente.
Dor não tem nada a ver com amargura.
Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais.
É pra ensinar a gente a viver.
O que precisa nascer
tem sua raiz em chão de casa velha.
À sua necessidade o piso cede,
estalam rachaduras nas paredes,
os caixões de janela se desprendem.
O que precisa nascer
aparece no sonho buscando frinchas no teto,
réstias de luz e ar.
Sei muito bem do que este sonho fala
e a quem pode me dar
peço coragem.
Deus de vez em quando me tira a poesia e eu olho pedras e vejo pedras mesmo…
Meu coração bate desamparado
Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
É tão bom existir!
Seivas, vergônteas, virgens,
tépidos músculos
que sob as roupas rebelam-se.
No topo do altar ornado
com flores de papel e cetim
aspiro, vertigem de altura e gozo,
a poeira nas rosas, o afrodisíaco
incensado ar de velas.
A santa sobre os abismos-
à voz do padre abrasada
eu nada objeto,
lírica e poderosa.
Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.
Eu tenho a esperança que nada se perde,
tudo alguma coisa gera…
O que parece morto, aduba…
O que parece estático, espera.
Ensinamento
Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.
A SERENATA
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
Em Português (excerto)
As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.
“Pior que medo de alma do outro mundo é o medo da alma do mundo do outro” –
AMOR VIOLETA
O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.
Às vezes acho que nasci na década errada. Tenho princípios que já se perderam e amo coisas que já não se dá mais valor.
“DEUS É MAIS BELO QUE EU.
E NÃO É JOVEM.
ISTO SIM, É CONSOLO.”
Não tenho tempo para nada, ser feliz me consome muito!
“A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.”
Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia, eu que já amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado, onde tem o desenho cômico de um peixe — os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba.
Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo, o que não queria dizer amo também, o piolho.
Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.
[…] É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando me lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo,na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo para escavar.
Um ideia de exílio e túnel.
(Poema ‘a casa’)
[…]
“Ó pai, duro é este discurso, quem poderá entendê-lo?”
Se abrisse um sol sobre este dia incômodo,
eu rapava com enxada os excrementos,
punha fogo no lixo
e demarcava mais fácil os contornos da vida […]
(Poema ‘discurso’)
Me apanho composta.[…]
Nem uma seta consigo pintar na estrada.[…]
Ô Deus, eu digo enraivada,
esmurrando o ar com meu murrinho de fêmea.[…]
Um preto no cruzamento
olhava atentamente para o fim dos tempos.
Eu olho meu olho fixo.
Como se não houvesse cantochão nem monges.
(Frases do poema ‘ruim’)
Uma necessidade cósmica nos protege
De onde vens, graça que me perdoa desta tristeza, desta nódoa na roupa, da pele rachada em bolhas. De onde vens, certeza de que um pouco mais de açúcar não fará a ninguém?
A CASA
É um chalé com alpendre, forrado de hera. Na sala, tem uma gravura de Natal com neve. Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem. Mas afirmo que tem janelas, claridade de lâmpada atravessando o vidro, um noivo que ronda a casa — esta que parece sombria — e uma noiva lá dentro que sou eu. É uma casa de esquina, indestrutível. Moro nela quando lembro, quando quero acendo o fogo, as torneiras jorram, eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida. Não fica em bairro esta casa infensa à demolição. Fica num modo tristonho de certos entardeceres, quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar. Uma ideia de exílio e túnel.
(Extraído do livro em PDF: O coração disparado [recurso eletrônico] / Adélia Prado. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2013. recurso digital – Página 10)
A Treva
Me escolhem os claros do sono
engastados na madrugada,
a hora do Getsêmani.
São cruas claras visões
às vezes pacificadas,
às vezes o terror puro
sem o suporte dos ossos,
que o dia pleno me dá.
A alma desce aos infernos,
a morte tem seu festim.
Até que todos despertem
e eu mesma possa dormir,
o demônio come a seu gosto,
o que não é Deus pasta em mim.
Texto extraído do livro “Figuras do Brasil 80 Autores em 80 Anos de Folha”, Editora PUBLIFOLHA – folha de São Paulo,27/6/1982, pág. 232.
Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão, e, não, apenas os poetas. Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade. O campo para que a palavra se instale para o autor e para o leitor é o campo do silêncio e da audição.
(Em jornal ‘O Tempo’, 16 de outubro de 2010)
“Estou com saudade de Deus,
uma saudade tão funda que me seca”.
( do livro “O coração disparado”, em “Poesia reunida”. 10ª ed., São Paulo: Siciliano, 2001, p. 213.)
“Não tenho mais tempo algum, ser feliz me consome”.
(De O Pelicano, em Poesia Reunida, página 365, Editora Siciliano – 1991)
Sei que Deus mora em mim
Como sua melhor casa.
Sou sua paisagem,
Sua retorta alquímica
E para sua alegria
Seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.”
_
(PRADO, Adélia. “Direitos Humanos” In Poesia Reunida, pg. 345 (Ed. Record – 2015)
“A liturgia,
O ícone,
O monacato.
Descobri que eu sou Russa.”
_
(PRADO, Adélia. “A Convertida” In Poesia Reunida, pg. 365 (Ed. Record – 2015)
“Raiva e Marcada de dor”
Recolhe do ninho os ovos
a mulher
nem jovem nem velha,
em estado de perfeito uso.
Não vem do sol indeciso
a claridade expandindo-se,
é dela que nasce a luz
de natureza velada,
é seu próprio gosto
em ter uma família,
amar a aprazível rotina.
Ela não sabe que sabe,
a rotina perfeita é Deus:
as galinhas porão seus ovos,
ela porá a sua saia,
a árvore a seu tempo
dará suas flores rosadas.
A mulher não sabe que reza:
que nada mude, Senhor.
A invenção de um modo
Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: “Ora, isso é pras mulheres de São Paulo”
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.
Enredo para um tema
Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que…disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.
O que a memória ama fica eterno.
AMOR FEINHO
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Não tenho tempo pra mais nada, ser feliz me consome muito.
A Serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardin.
Estou no começo do meu dessespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela,se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre.
Não quero faca nem queijo. Quero a fome.
Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento. (Ensinamento)
Ama e nem sabe mais o que ama. (Pranto Para Comover Jonathan)
Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
As sensibilidades sem governo.
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira(…) Vai ser coxo na vida é maldição para homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
Assim que escurecer vou namorar.
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível.
A vida é muito bonita,
basta um beijo
e a delicada engrenagem movimenta-se,
uma necessidade cósmica nos protege.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta.
“Não me falou em amor. Essa palavra de luxo.”
Dona Doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Não tenho mais tempo algum, ser feliz me consome.
Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande.