Oceanos não cabem em represas. Transbordei!
Parece que nesse ano a vida pegou pesado com a gente, exigindo aprendizados e evoluções, pedindo que cumpríssemos lições antigas, que entendêssemos um pouco melhor nossa missão, que fechássemos ciclos e nos reinventássemos.
Aqueles velhos desafios, aquelas provas que a gente deixava pra depois, aquele contato com o nosso profundo que não ousávamos ter, desculpando-nos com a falta de tempo e com o acúmulo das tarefas importantes da vida, neste ano não tivemos como prorrogar de novo. A vida foi incisiva: evolua logo pessoa de Deus! Agora é a sua verdade ou o mundo te atropelando.
Ano que exigiu da gente coragem: os mais humildes tiveram que aprender a impor limites, a falar não, a amar mais a si próprios, a expressar opiniões, a mostrar a voz.
Como nunca, o mundo precisou ouvir os que têm a alma mais serena e andaram se escondendo nas sombras dos grandes egos.
Também exigiu coragem dos mais vaidosos e imodestos: esses tiveram que aprender a ouvir, a flexibilizar suas verdades, a ver que tudo é relativo.
A vida deu tantas chances, muitas vezes nada fáceis, mas as possibilidades de crescimento estavam aí. Muita gente empacou no espaço sem forma entre as mortes de hábitos e personalidades e o renascimento de si mesmo. Mas a vida estava aí disposta a ajudar nessa evolução, pelo amor ou pela dor. Algumas pessoas tiveram coragem de atravessar os próprios desafios.
Eu gosto de gente doida.
Gente que coloca cor na vida, que fala demais, que tem ideias próprias e impróprias, que perde o senso e os limites do politicamente correto e do permitido. Que fala alto, que ri alto, que vive alto. Que canta, mesmo desafinando. Que dança, mesmo descompassando. Que é bobo alegre e feliz por nada. E quando triste, sabe fazer piada.
Gosto de gente que não fere ninguém, assim diretamente, às vezes só com as indiretas.
Pessoas doidas e livres, que são o que são. Que têm a liberdade de não enxergar os seus excessos. Que não se podam. Que têm opinião sobre tudo e que são donas de suas verdade – apesar de sabe-las efêmeras. Seus mundos são fantasias concretas. E tão estáveis quanto uma nuvem.
Perdem horas palestrando sobre seus universos e vivem neles diariamente. Não querem sair, querem que as pessoas entrem.
Gosto de gente doida, que se diferencia, e que por isso inspira.
Gente que escancara as portas do peito e deixa a vida entrar.
Gente que se move, que discorda, que sofre, que não se entrega, que não sabe voltar a ser o que era, se é que já foi, algum dia, outra coisa além de doida.
Gente que tem personalidade, tanta, que vira história, que vira referência, que vira centro das atenções e nem precisa subir num palco. Gente que vira assunto naqueles momentos chatos.
Gosto de gente forte na doidice. Gente assumida! Que saiu do armário ainda criança.
Eu sigo essa gente, eu rio com essa gente, eu choro com essa gente, eu me encontro nessa gente.
Eu fico hipnotizada com os doidinhos que equilibram a falta de sensatez do mundo.
O que chamam de “amor livre” pode ser um machismo disfarçado:
Dizem por aí que amor livre é quebrar os moralismos, ser dona de si, não se prender a nada e a ninguém. Mas eu acho que nisso tudo há alguns poréns.
Se por um lado tantas crenças do passado faziam a mulher ter o corpo fechado, nessa nossa liberdade anunciada de agora, em que a gente se abre totalmente, não se cuidar, se proteger, se conhecer e se amar, torna esse outro extremo da realidade tão ruim quanto antes.
Pode ser que viver o amor livre seja uma forma mais moderna de exercitar o machismo e tornar o corpo da mulher ainda mais território público, já pensou nisso?
Por mais que a gente saiba o que quer, do que gosta. Por mais que a gente veja e tenha consciência. Para se cuidar, se respeitar e realmente ser livre, é preciso uma observação profunda, é preciso encarar medos e quebrar mitos. É preciso primeiro viver por dentro a mudança e depois estar (diferente) no mundo.
Não adianta sair de nariz empinado, mostrar segurança nos passos, soltar o corpo e a mente, se no dia seguinte a gente chora sozinha, a gente espera a mensagem que não chega, a gente quer um carinho, a gente se torna possessiva, competitiva, insegura…
E eu não estou defendendo a síndrome de princesa e muito menos querendo voltar no tempo! Eu acho que a gente tem que ser o que bem queira: rainha, gatinha, tigresa…
Mas desde que a gente se conheça. Porque me parece que ainda hoje, entre tantas mulheres que se dizem evoluídas, soltas e livres, a briga é competitiva e é pela conquista do troféu fálico.
E, na minha opinião, deveria ser bem o contrário. Se fosse liberdade mesmo isso que a gente vive, as pessoas estariam sorrindo, se amando, se curtindo, se respeitando mais do que se machucando.
As mulheres podem ter conquistado muita coisa, mas a gente ainda busca ser amada, respeitada e livre. Ainda é tão forte essa luta.
Tanto faz se poderosa ou fracassada, sozinha ou acompanhada. Ao invés da gente alimentar nossas carências, nos abrindo para qualquer mané ou cara e não receber nem um terço do que a gente precisava, é melhor encarar a empreitada de curtir a nós mesmas acima de tudo e valorizar o nosso profundo.
Que a gente perceba que liberdade mesmo é despir-se de corpo e alma, e que se for só pela metade não vale a pena, não vale a noitada, não toca a nossa verdade e o voo se torna raso, é uma prisão disfarçada…
Então, que só entre na gente (na alma, no corpo, no espírito) o que fizer sentido, o amor que nutre, a liberdade que alivia.
da horta
gosto do amor que
quando não frequenta mais
a cama, a mesa, a aorta
a gente não precisa
fechar a porta
e varrer o peito
limpando
mágoas, descasos, ausências
Esses que a gente pode deixar
a fresta sempre aberta
que tem sempre um sopro
de primavera
onde nascem espontaneamente
flores fortes e transparentes
cansei
de segurar a onda
nas minhas costas largas
e aguentar as pontas
de quem não se desamarra
de fazer vista grossa
para essas almas rasas
de ficar no salto
se o meu corpo é samba
de manter a calma
nesse mar de lama
de conter o grito
meu bem mais bendito
de esperar o momento
precipício
para saltar dos trilhos
e não ter mais nada
a ver com isso
estou me compartilhando
porque entre nós
nasceu amor demais
distribuindo samambaias
orvalhadas do ar mais puro
amando tantos olhos
estou entregando primaveras
gratuitamente
em praça pública
doando sementes de segredos
desvendados
até para mãos arredias
estou me distribuindo
de presente
porque me rebentaram
inúmeras margaridas
selvagens
e eu quero
plantar o pólen
no mundo
às vezes não há mais volta
para onde estávamos
para o que éramos
podemos parar numa estação
e fechar os olhos
para a fresta que se abriu
e optar por não embarcar
no trem que passa
e nos abre as portas maiores
a cada dez minutos
podemos meditar
e ter empatia pela Terra
(planeta perdido no espaço
acidente nascido de um erro)
podemos querer voltar
mas a ferrugem tomou
os trilhos da velha estrada
às vezes não há mais volta
e não há mãos e verdades
nos acenando desse caminho novo
poucos são os olhares que nos encorajam
a adentrar o desconhecido
e já com a alma cansada de velha
temos que ainda entender
que somos precursores
desbravadores
temos que escolher acordar
(como cegos que mergulham
na escuridão)
mesmo que a maioria
esteja dormindo
não se desespere menina
tudo em você se deu tarde
nenhum ciclo se rompeu
num piscar de asas
foi preciso lutas e hibernações
para que outras peles
te cobrissem a alma
como é difícil aceitar o curso
de ser outra
não se desespere
vendo as primaveras transcorridas
o tempo indo ligeiro
e ainda assim
seus passos distraídos…
a vida
(em pequenas bolhas que estouram
quase sem ruídos)
está sendo destilada
no íntimo
você se detém nas páginas de um livro
porque os parágrafos tocam fundo
e olhos novos sempre penetram
por instantes eternos
e tudo leva anos, meses em você
sempre assim tem sido
para poder nascerem sentidos
que revigoram o viver
eu nunca soube
ser metade
nem da laranja
em cima do muro
nem morna
ponderando o mergulho
sempre fui inteira:
um cacho maduro
um limão sem suco
dos pés à cabeça
da cabeça às nuvens